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“Um núcleo de festas é um conjunto de pessoas que unem forças para viabilizar um objetivo em comum no meio artístico, seja ele ligado à realização de eventos, à produção musical ou a outras atividades culturais”.
Esta é a definição utilizada pela equipe da Ludos, uma produtora de eventos catarinense que se posiciona como um “ecossistema que alimenta o mercado do entretenimento, aproximando marcas, eventos e projetos criativos”. No comando, estão duas mentes criativas que não apenas possuem experiência na realização de label parties, mas também são DJs bastante experientes: Bernardo Ziembik e Mohamad Hajar.
Bernardo já é produtor de eventos há 12 anos, implementou a nova cara do Seas, trabalhou num dos principais grupos de entretenimento do Sul do Brasil, o Grupo All, sendo curador e gestor do Terraza, participou da estratégia e produção do SOME Festival, em Curitiba, contribuiu para a operação de festivais como Tribaltech e ZOOminimal, e atualmente faz a gestão de um novo complexo de eventos que inaugurará em Santa Catarina.
Já “Moha”, como é conhecido, foi o fundador do coletivo detroitbr e também produz eventos há 13 anos. Atualmente faz parte do DM7 Group, atuando na organização do Adhana Festival e outras marcas do grupo, integrou o time estratégico do Grupo T2 por 4 anos, participando da gestão e curadoria do Club Vibe e da organização de festivais como TribalTech, CarnaVibe, SOME Festival e ZOOminimal, já trabalhou para a festa Kaballah (Entourage) e outros eventos culturais.
E é com eles dois nossa entrevista, visando trazer o máximo de informações para você que pensa ou já tem um evento e quer saber mais detalhes de como profissionalizar a sua marca.
SOAR: Bernardo, Moha, obrigado por toparem esse bate-papo. Primeiramente, por serem profissionais que estão inseridos diretamente no meio de produção de eventos, vocês imaginavam que ficaríamos tanto tempo impedidos de realizar festas? Em que momento vocês começaram a ter uma visão/perspectiva mais otimista e realista do cenário?
Ber: Boa tarde, pessoal. Obrigado pelo convite. É sempre bom poder compartilhar um pouco do que sabemos e nossas expectativas. Falando em expectativas, começo respondendo a primeira pergunta: não, até hoje parece surreal. Tanto o meu lado artístico como DJ quanto o meu lado como produtor/gestor de marcas pela Ludos foram completamente afetados e a reinvenção foi a palavra chave pra isso. Como lado bom, revisitei vários conceitos, estudei, recriei a empresa e consegui trazê-la para um ambiente ainda maior e mais interessante.
Quanto às expectativas, eu admito que fui e voltei vários momentos. No segundo semestre de 2020 achei que seria possível voltar a operar, depois no verão… depois de um certo momento parei de acompanhar a mídia e comecei a focar em outros projetos, pois sabia que ainda seria longo (e eu acredito que ainda será). O momento realmente em que um planejamento começou a fazer sentido foi quando a gente viu a vacinação avançar. Agora, dá pra criar cronograma e começar a prospectar. Acredito que a gente tenha uma operação de verão, ainda bem complexa, com alguns riscos pós carnaval, e que 2022 ainda será de reconstrução, com alguns limitadores ainda impostos.
Moha: Boa tarde, muito grato pelo convite. Com certeza não imaginava, primeiro seriam só três meses, depois voltaríamos com tudo no verão… Eu só fui cair na real no final de 2020, quando aceitei que não deveria mais criar expectativas até que a vacinação de fato acontecesse. Agora (agosto de 2021) já estou com certo otimismo para o próximo verão, mas ainda assim com ressalvas, principalmente por observar que nos países mais avançados já está havendo um recuo na reabertura dos eventos.
SOAR: A cena eletrônica vinha numa crescente com muitos núcleos e coletivos independentes surgindo, mas o baque foi grande e talvez muitos tiveram que abandonar a ideia para buscar outra forma de sustento. Apesar de não ser uma medida certa, como vocês avaliam esse impacto? Muitos núcleos de fato vão desaparecer? Isso fará outros novos surgirem?
Ber: Inicialmente se imaginava que os núcleos independentes seriam os menos afetados, pois eles não tem um local físico seu, a equipe é composta basicamente por freelas, etc. Mas, a verdade é que muita gente já sobrevivia disso (ou pelo menos tinha essa com uma renda de grande importância, principalmente a galera dos grandes centros). Falando no sul do Brasil, sinto que os núcleos que estão bem posicionados no mercado apenas apertaram o freio e acionaram o “stand by”, e devem voltar, em sua grande maioria, apenas em 2022 com força. Acredito que vários realmente deverão encerrar suas atividades, até porque não eram o foco da equipe estratégica, nem mesmo antes da pandemia. Sinto que outras pessoas também decidimos tomar outro rumo. Tá tudo certo!
Quanto ao surgimento de novos núcleos, eu espero que sim! Mas eu acho que não vai ser de cara, sabe? Pois eu acredito que haverá um “carnificina” inicial muito complexa. Após essa explosão acredito que, sim, haverão novos projetos, muito bem estruturados. Inclusive é com essa expectativa que nós lançamos as últimas vagas da nossa mentoria e curso para quem quiser criar ou profissionalizar o seu núcleo/marca de festas.
Moha: Essa crescente que você citou na verdade é cíclica, mesmo sem pandemia a cada 2-3 anos acontece uma renovação de núcleos, marcas e pessoas na pista. Isso é natural da cena, enquanto algumas pessoas deixam de tratar a música e a noite como foco por se formarem, se casarem, focarem mais em seus trabalhos ou até mesmo filhos, outras atingem a maioridade e passam a dedicar-se quase que integralmente a projetos musicais ou de festas. O que a quarentena fez foi acelerar o processo de quem já iria deixar de existir, bem como deixar os jovens com mais sede de fazer algo impactante quando as coisas voltarem ao normal. Para as marcas que já existiam, não fizeram festas clandestinas e pretendem retornar em breve, acredito que foi um momento de parar, respirar, recarregar as baterias e reorganizar as ideias. Trabalhar na noite é desgastante, nós sacrificamos o final de semana e nem sempre conseguimos descansar durante a semana.
SOAR: Para aqueles que ainda não tinham dado o start na ideia, mas que agora querem levá-la adiante, qual é o pilar central ou o ponto mais importante que se deve ter em mente antes de começar? O que se deve ter muito bem definido para evitar problemas no futuro?
Ber: Legal você perguntar isso. Com a mentoria foi muito mais fácil revisitar esses conceitos e, portanto, responder essa pergunta. Sendo um coletivo ou não, tendo foco financeiro ou não, essa marca precisa ser tratada como uma empresa. E, com isso, você precisa ter a sua identidade. E ela começa pelo manifesto, pela missão, missão e valores, pela identidade visual e pela ideologia proposta. Isso é fundamental, não só para angariar fãs, quanto para ter uma direção de onde ir.
Outro ponto chave que nós destacamos, e vemos como um erro grave de algumas produções, é o lance da verificação de viabilidade do local do evento. Desde avaliar a fama do local, a parte legal com os alvarás, a parte estrutural, como os banheiros, entre outros pontos importantes que listamos em nossa apostila.
SOAR: Além disso que vocês pontuaram, existem outros pontos importantes que devem ser planejados com muito cuidado para não sair no vermelho, certo? Quais vocês pontuaram como os mais fundamentais?
Ber: É muito difícil encontrar coisas que possamos resolver 100% sozinhos. Com uma festa/núcleo, isso não é diferente. O trabalho em equipe e uma boa estruturação desta tem papel fundamental nesse processo. Eu como bom “Zé Planilha” que sou me tornei um expert em Excel e, com isso, comecei a visualizar o escopo do evento de forma financeira, criando vários cenários, a fim de entender estratégias a serem tomadas e investimentos a serem feitos. Nós criamos um modelo de planilha super legal que tá incluso nesse projeto, com as fórmulas de receitas, despesas, checklists, tudo encaminhado. Claro, a produção em si é um fator chave para a entrega e experiência do evento (e para a continuidade dele). Visitamos a parte de curadoria e a importância de entendê-la, ser imparcial quanto a ela, entender quais são os interesses e objetivos com ela. Passamos pelo plano de mídia, relacionamento interno, externo. A ideia é uma visão geral, para que a pessoa possa sair operando.
SOAR: É possível um coletivo em fase inicial, sem história ou eventos passados, apenas com uma ideia ou propósito conseguir patrocínio já no primeiro evento? Qual é a melhor forma de você chamar a atenção de uma marca para investir no evento? Os núcleos/coletivos devem recorrer a marcas mais locais/regionais nesta fase inicial?
Moha: É possível, porém não é tão simples. Se a marca é nova, a confiança do patrocinador tem que ser conquistada a partir do histórico de quem irá realizá-la. Se os realizadores já fizeram parte de outros projetos ou possuem relevância em suas carreiras artísticas, já começa a ficar mais fácil, especialmente se alguém já trabalhou com os profissionais envolvidos na tomada de decisão das empresas pretendidas. Para pessoas completamente novas, sem contatos profissionais e sem histórico no mercado, acho bem difícil conseguir um patrocínio já de cara. De qualquer maneira, uma marca regional sempre vai ser mais fácil de alcançar e de conquistar, por terem processos decisórios internos menos burocráticos e muitas vezes mais emocionais.
SOAR: E para aqueles que já possuem um certo nome no mercado, pegando como exemplo a Seas ou mesmo a detroitbr, o que foi necessário para que os patrocínios acontecessem?
Moha: No caso do detroitbr os patrocínios sempre vieram como complementos, pois a auto-sustentabilidade faz parte do nosso conceito e também por não aceitarmos certas exigências feitas por patrocinadores, como por exemplo tirar o chopp artesanal do cardápio para priorizar uma marca de cerveja industrializada. Por isso nunca fizemos um grande trabalho de captação, o detroitbr cresceu naturalmente ao ponto em que as marcas vinham nos procurar para firmar parcerias.
Ber: Falando pelo Seas, tem muito a ver com o relacionamento que foi criado ao longo do tempo, o conteúdo gerado pela marca, para conseguir apresentar a potenciais patrocinadores e também o volume de pessoas que a festa atingiu. Além disso, o quesito experiência de marca ganhou muita força nos últimos tempos. Apresentar uma ideia clara, objetiva e direta de interação com o produto tem um potencial de conquista grande de patrocínio.
SOAR: Outro ponto importante é, sem dúvidas, a questão do alvará, que conhecemos por ser a parte mais burocrática do rolê. O que os coletivos precisam saber para conseguir resolver isso de forma mais fácil e sem dor de cabeça?
Moha: A primeira coisa que as pessoas precisam perceber é que não se deve usar as festas clandestinas dos anos 90 como desculpa para não legalizar os eventos hoje em dia. Naquela época havia uma forte repressão cultural, em alguns países chegou-se a proibir por lei a música eletrônica em específico, então fazer festas ilegais era a única forma de lutar contra isso. Hoje em dia isso é raro, ainda mais se estivermos falando de lugares onde já existe uma cena eletrônica sólida, como litoral catarinense, Curitiba, São Paulo e outras capitais. A música eletrônica está sendo aceita e passando a fazer parte da sociedade, da cultura do nosso país. Sendo assim, legalizar os eventos é essencial para mostrarmos que somos sérios, que nos preocupamos com a segurança e o bem-estar dos frequentadores, pois por mais chatas que possam parecer as exigências dos órgãos públicos, no geral elas existem para evitar que pessoas mal-preparadas ou mal-intencionadas façam coisas erradas e prejudiquem o público e a cena como um todo.
Ber: Tudo começa na verificação de viabilidade do local. De cara já peça os alvarás básicos da casa: bombeiros, prefeitura e civil. Com isso você começa a entender a facilidade ou complexidade de operar neste local. Na parte do coletivo, pontos como segurança homologada na polícia federal e equipe de saúde, seja ela socorrista para pequenos eventos, ambulâncias para maiores ou até um posto de atendimento, é um fator vital para evitar qualquer incomodo.
SOAR: Isso tem muito a ver com a ocupação de espaços públicos também para os eventos. Para quem deseja ir por esse caminho, quais dicas vocês dariam?
Moha: a maior dica é ter ciência de que esse é um ato altruísta. Para fazer festas em espaços públicos a pessoa enfrentará inúmeros percalços burocráticos, muitas vezes não conseguirá autorização para vender produtos no evento, muitas vezes enfrentará resistência mesmo estando 100% na legalidade… Então o primeiro passo é ter ciência de que haverá bastante trabalho para pouco retorno financeiro, ou seja, a recompensa tem que vir de maneira subjetiva, pela satisfação pessoal de ver algo acontecendo, de ver um objetivo sendo atingido. Por isso mesmo que a segunda dica que eu dou é: tenha eventos em espaços privados também. Faça um evento paralelo para que o lucro dele financie o evento do espaço público, eduque o público para que ele entenda a diferença entre os formatos e a importância dele valorizar também o evento com fins lucrativos. Não deposite todas as suas fichas em uma coisa só.
SOAR: O mesmo vale para a questão de fornecedores e locação de equipamentos. Já existem empresas gabaritadas nesse meio, mais indicadas pela experiência? Como encontrar a ideal?
Moha: Eu dividiria essa parte em duas categorias. Para itens específicos e de alta tecnologia, como sistemas de som, de iluminação, telões e afins, as melhores empresas estão localizadas nos grandes centros do sul/sudeste, são elas que possuem os últimos modelos das melhores marcas, em grande quantidade inclusive. Nesse caso a pesquisa é mais simples e direta, o produtor precisa do equipamento X e somente as empresas A, B e C possuem ele no Brasil.
Já para itens mais genéricos, como estruturas, equipamentos de bar, mão-de-obra não existe tanto essa limitação geográfica, inclusive muitas vezes no interior você vai encontrar um profissional liberal que desenvolva um material que custaria muito mais caro se fosse feito por uma grande empresa. Nesse caso é preciso de experiência e criatividade para conseguir extrair bons feitos e boas negociações de profissionais que não fazem parte do nosso meio.
SOAR: Saindo um pouco desses aspectos mais técnicos, na visão de vocês, o que faz um coletivo afundar ou decolar? Imaginamos que seja a experiência completa, um combinado de fatores… mas como fazer isso do jeito certo?
Moha: A essência é o fator chave que pode fazer um coletivo decolar e afundar, pois é ela quem vai aproximar e fidelizar pessoas e é a falta dela que vai fazer todo mundo se afastar, caso aconteça. Traduzindo isso para uma linguagem menos filosófica, para decolar basta propor algo que ainda não foi feito ou que deixou de ser feito, para pessoas que estão dispostas a abraçar a causa. Para afundar basta não ser fiel a essa essência proposta, ou ser fiel demais e perder o bonde da constante evolução e mutação das pessoas.
SOAR: Quais os principais serviços que vocês oferecem e que pode ser de grande utilidade se tratando de música eletrônica?
Moha: O curso e a mentoria sem dúvidas são os serviços de maior utilidade pública que oferecemos, pois eles proporcionam que novos profissionais cometam menos erros, o que indiretamente gera uma cena mais saudável, conduzida por pessoas conscientes das suas obrigações e satisfeitas por suas conquistas.
SOAR: Por fim, qual mensagem vocês deixam para todos aqueles que, assim como nós, não vêem a hora de voltar a uma pista de dança?
Ber: Espera mais um pouquinho… A gente vai voltar firme, forte e vacinado!
Moha: Isso que hoje parece infindável, um dia será uma lembrança, memórias de um tempo difícil que superamos, no qual muito aprendemos e evoluímos. Se tivermos a sorte de sair vivos dessa, será pra sermos ainda mais felizes quando tudo isso acabar!